quarta-feira, 18 de junho de 2014



O Homem de Descartes.
A situação em 2014 (III)


3. Algumas receções seis- e setecentistas

Uma das principais novidades do colóquio de janeiro (ver neste blog, 27.01.2014 e 14.02.2014) foi também ajudar a compreender melhor um capítulo do cartesianismo no que toca a O Homem, isto é levar uma parte do véu sobre as leituras que foram feitas a partir das primeiras publicações, póstumas, relembremos.
Certo é que, com a edição latina e depois a francesa, reações e aproveitamentos não tardaram a exprimir-se.
Na sua comunicação, « Médecins et cartésiens entre Louvain et Paris (1662-1670) », Domenico Collaccioni estudou o processo de receção atribulado do tratado cartesiano pela Universidade de Lovaina, antes da condenação de 1662 e nos anos seguintes, com destaque para os escritos de Vincent Philippeaux. Em particular, o Compendium omnium praecipuarum actionum automaticarum in homine (1662), pouco conhecido até agora, que pode ser considerado em parte como um comentário d’O Homem. Esclareceu também a vivacidade da receção lovaniana pela defesa, no ano de 1662, de três teses de medicina, ligadas à questão das ações automáticas, fator não alheio à reação institucional no contexto do aceso conflito opondo jesuítas e jansenistas.
As apresentações que se seguem são da autoria de cada autor e foram traduzidas (do francês ou do inglês).


Philippe Drieux, « Machine et communication ».
O parágrafo de O Homem correspondendo ao artigo 83 da tabela elaborada por Clerselier deixa admirado La Forge. Acha o artigo « demasiado breve por estar tão bonito ». O objetivo desta comunicação visa assim elucidar as motivações de tal apreciação estética. Deve-se ao fato de La Forge crer poder ler no texto de Clerselier uma descrição do suporte corporal das ligações que nos unem secretamente às màquinas parecidas connosco.  Esta leitura impõe ao texto cartesiano várias torções mas contribui para o fazer entrar na posteridade, nomeadamente em Malebranche. A leitura ocasionalista do artigo por La Forge constitui um bom exemplo de figura da problemática da receção.

Emanuela Scribano, « La Forge et les ennemis de L’Homme ».
No seu Traité de l'esprit de l'homme, La Forge entra em polémica com os filósofos que confundem o espírito e o corpo atribuindo a razão aos animais. O erro desses filósofos vem de acreditarem que o comportamento animal implica a inteligência. Cureau de La Chambre encarna o inimigo de La Forge. Segundo este último, a fisiologia de Descartes fornece o melhor argumento contra aqueles que fazem a confusão espírito/corpo porque demonstra que nenhum conhecimento é necessário para explicar este comportamento. O princípio segundo o qual o conhecimento é necessário para produzir um efeito, que será central no ocasionalismo, é portanto percebido como estranho à filosofia cartesiana pelos primeiros filósofos que se reclamam da filosofia de Descartes.

Raphaëlle Andrault, « Sténon lecteur de L’Homme ».
Em 1665, o Discours sur l'anatomie du cerveau (Discurso sobre a anatomia do cérebro) pronunciado no salão de Thévenot em Paris fica como um marco durável na história do cartesianismo. Percebido como uma arma para refutar de maneira definitiva a explicação da união do corpo e da alma proposta pelo tratado d’O Homem, passa a ser uma máquina de guerra virada contra a metafísica cartesiana, nomeadamente por Spinoza e Leibniz. Esta receção oculta no entanto as relações ambíguas e complexas entre a anatomia de Sténon e a epistemologia cartesiana. Comparar o uso da analogia da máquina em La Forge e em Sténon permite esclarecer não só a natureza do desde então chamado « mecanismo médico », a ligação entre a metafísica da união e a anatomia do cérebro, mas também as diferentes articulações, desenvolvidas pelos cientistas que se reclamam de Descartes, entre observações e hipóteses.



O Homem de Descartes.
A situação em 2014 (IV)

4. Abordagens filosóficas

Claude Gautier , « Le Traité de la nature humaine de David Hume est-il un traité de l'homme 
Na sua comunicacão, « Será o Traité de la nature humaine de David Hume um tratado do homem ? », procurou mostrar de que maneira(s) a nova distinção entre filosofia natural e filosofia moral, depois de Newton, reinterpretada por Hume numa perspectiva céptica e empirista, leva a dissociar o que pertence à constituição de uma ciência do homem, entendida como um indispensável pressuposto do desenvolvimento dos saberes positivos.

Erik-Jan Bos, « The concept of « inverse transmission » of sense perception in the brain ».
Em O Homem, Descartes trata extensamente dum tópico que se podia chamar « transmissão inversa ». As sensações das coisas exteriores são transferidas da superfície interior do cérebro para a glândula pineal pelos espíritos animais, que fluem fora da glândula para a superfície interior do cérebro. Na Dioptrique, Descartes deixa em silêncio esta última fase da percepção e as poucas palavras sobre isso nas Passions de l’âme contradizem a explicação de origem. Neste contexto as disputas de Regius em 1641 são comprovadamente interessantes. Mostram que Regius sabia muito mais sobre as teorias de Descartes, incluindo a questão do enchimento das cavidades do cérebro, do que se pode encontrar nos escritos de Descartes. Defendo que 1) as publicações de Descartes refletem as ideias mais avançadas de Descartes ; 2) a publicação d’O Homem pode ser vista como um falhanço, uma vez que Descartes nunca mais assumiu algumas dessas ideias.

Julie Henry, « Ce que peut le corps. Une mise en regard du traité de L’Homme de Descartes et de l’Abrégé de physique de Spinoza »
O Homem de Descartes e o chamado Abrégé de physique de Spinoza, muito diferentes tanto na forma como nos conteúdos, partilham uma abordagem comum : pensar o que pode o corpo por si mesmo. Nesta perspectiva das funções corporais, propôs-se um diálogo imaginário entre ambos os textos, reinscrivendo-os nos respetivos projetos filosóficos : descrição fisiológica e sensitiva do corpo humano no primeiro, material físico numa perspetiva ética para o segundo. 
Stephen Gaukroger
O projeto filosófico geral de Descartes leva também em conta o que faz humanos os seres humanos. Este aspeto é muitas vezes implícito e a melhor maneira de o tornar manifesto consiste em comparar o que diz dos estados cognitivos e afetivos dos animais e o que diz desses estados nos humanos. Descobrimos então, apesar de uma certa semelhança entre eles, que o que distingue os seres humanos é a sua capacidade de se distanciarem desses estados e fazerem juízos sobre eles. Os críticos de Descartes no século XVIII argumentaram que esta conceição individualista era inadequada.

(FIM)

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