quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Projecto sobre o Conceito de Natureza

Título:O conceito de natureza no pensamento médico-filosófico na transição do século XVII ao XVIII

Palavras-chave: natureza, ordem, organização, inteligibilidade, corpo, mecanismo

Sumário: Este projecto vem na continuidade do projecto “Filosofia, Medicina e Sociedade”, incidindo sobre um âmbito restrito. A base da equipa de investigação vem desse projecto, nomeadamente Adelino Cardoso, Guido Giglioni e Manuel Silvério Marques, Palmira Costa, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Paulo de Jesus e Bruno Barreiros, aos quais se acrescenta Anne-Lise Rey, com quem foi já iniciada a colaboração, no âmbito de uma das tarefas incluídas no projecto aqui apresentado. A equipa é reforçada nomeadamente por investigadores com bolsas de doutoramento e pós-doutoramento (Hervé Baudry, Raphaële Andrault, Francisco Silva, Alessandra Costa Pinto) e por investigadores exercitados no trato com a matéria em causa (Marta Mendonça) e na Itália (Nunzio Alloca).

Visa-se aprofundar a articulação entre filosofia e medicina a propósito de um conceito nuclear, que está no cerne da racionalidade moderna e cujo âmbito abarca por igual a ordem geral do cosmos e os diferentes planos fenoménicos. De facto, natureza significa ordem, regularidade, inteligibilidade.

O período escolhido é aquele que decorre entre a publicação do Tractatus de homine, de Descartes, em 1664 pelo médico e filósofo La Forge e a morte do mais influente professor de medicina da primeira metade do século XVIII, Hermann Boerhaave, em 1738. Trata-se de dois marcos, porquanto o Tratado cartesiano é emblemático do intento de aplicar o mecanicismo à abordagem anátomo-fisiológica do corpo humano e a morte de Boerhaave significa a passagem a um novo ciclo que, simplificando muito, podemos designar como medicina do iluminismo em que a representação mecanicista é integrada numa visão da natureza como sensibilidade e perfectividade.

A hipótese orientadora do trabalho é a de que, no decurso do período escolhido, há um contributo específico do pensamento médico-filosófico para a focagem da noção de natureza, da sua eficácia e da explicação dos seus fenómenos. Tal contributo decorre da especificidade do corpo humano vivo, que revela a insuficiência do modelo mecanicista. De facto, a medicina é um campo privilegiado em que se desenvolve o programa mecanicista, mas também onde este programa revela maiores dificuldades e suscita um debate mais intenso. Sob este aspecto, a obra emblemática da iatromecânica, De motu animalium (1680) de G. B. Borelli, é muito significativa: o intento de incluir a medicina no âmbito fisico-matemático, ao mesmo título que a astronomia (Op. cit., proemium) é acompanhado, aí, pela afirmação da causalidade da alma sobre o movimento corporal, afirmação que será acentuada por J. Bernoulli num anexo à segunda edição da obra.

A literatura médico-filosófica subsequente à publicação do Tratado cartesiano defronta-se com a temática da causalidade, uma vez que o mecanicismo tende a eliminar a espontaneidade e dinamismo da natureza. O confronto dá-se especialmente entre ocasionalistas como Cordemoy e Malebranche, por um lado, e naturalistas como F. Glisson e R. Cudworth, por outro. Os primeiros destituem a natureza de toda a potência e causalidade, ao passo que os segundos concebem a natureza como princípio imanente de acção.

A visão mecânica da natureza requer um novo olhar, que reconheça o lado activo e a dimensão estético-moral da natureza e do corpo humano. A obra de R. Boyle, nomeadamente De ipsa natura (1688), elaborada na perspectiva do “fisiólogo”, opera uma síntese coerente entre mecanismo e vitalidade da natureza.

A obra médica de Boerhaave é representativa da orientação predominante nas primeiras décadas do século XVIII no sentido de articular a explicação mecanicista com o legado vesaliano, que releva a dimensão estética da natureza, e mesmo com a tradição hipocrática, que confere à natureza o estatuto de princípio fundador da medicina. O assumir da história como parte integrante do saber médico é uma das inovações de Boerhaave e da medicina do seu tempo.

Ao nível da representação do corpo, a corrente fibrilista fornece uma imagem do corpo que abre uma brecha profunda no sistema humoralista e vai inspirar a fisiologia das Luzes, nomeadamente a de A. von Haller. A obra de Baglivi merece uma atenção especial por uma nova compreensão da vida enquanto equilíbrio de motus e sensus (BAGLIVI, Opera, 1714: 259), reconhecendo o primado da função e introduzindo a irritabilidade (irritatio) como propriedade intrínseca do corpo vivo.

No plano conceptual, a inovação mais relevante foi a introdução do neologismo “organismo” por Leibniz e Stahl na primeira década do século XVIII. A controvérsia entre ambos decorre em larga medida de uma diferente articulação entre organismo e mecanismo e a uma concepção diferente sobre a potência e causalidade da natureza.

No que respeita à medicina portuguesa deste período, em larga medida por estudar, colocam-se duas questões solidárias: qual a sua especificidade e em que medida acompanhou o movimento intelectual da medicina europeia ( nomeadamente em autores como Isac Cardoso, Curvo Semedo, Brás Luis de Abreu, Jacob de Castro Sarmento, Bernardo Pereira) sobre a natureza e suas propriedades.
No plano metodológico, procurar-se-á inscrever a literatura médica na dinâmica da ciência moderna, indagando a especificidade do pensamento médico; evidenciar-se-á a tensão/articulação entre o mecânico e o vital; prestar-se-á atenção às afinidades conceptuais (natureza, ordem, organização) e às polaridades que alimentam o discurso sobre a natureza: natureza / arte, natureza / sobrenatureza; ordem / anomalia.

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