Pode parecer surpreendente tratar juntamente desses
aspetos comunmente dissociados, até concebidos como antagónicos. Mas a
dicotomia literatura/ciência que, na maior parte das vezes, é bastante válida
quanto à caraterização da discursividade moderna, não é pertinente no caso da
escrita pré-moderna, seja qual for o campo discursivo em análise. A
“cornucópia” humanista é também fator de mistura genérica, ignorando
alegremente os nossos códigos disciplinares. Pelo menos, foi superando esse
tipo de oposição que renovaram, e despertaram o interesse por ela, a obra
física de Descartes, Le Monde. O estudo
libertador de Pierre Alain Cahné, Un autre Descartes. Le philosophe et son
langage (Paris, Vrin, 1980), seguido pelo de Jean-Pierre
Cavaillé, La Fable du monde (Paris, Vrin-EHESS,
1991), assinalaram o seu caráter literário, ressalvando a sua estrutura
retórica. Um outro trabalho marcante na história da redescoberta dos textos de
física foram as análises de Fernand Hallyn, das quais se pode destacar o
capítulo 4 de Les Structures rhétoriques de la science : de Kepler à
Maxwell (Paris, Seuil, 2004).
No colóquio de Lyon foram abordados vários aspetos
daquilo que poderíamos chamar a sua cientificidade literária. Não se trata,
pois, de avaliar conteúdos científicos através de uma grelha de leitura
literária mas sim de descrever e compreender como esses conteúdos passam também
por um trabalho textual, isto é, mostrar até que ponto a informação de cariz
teórico depende da formatação não só pela escrita mas também pela imagem.
Portanto, aqui, não interessa em primeiro lugar a questão filológica das fontes
dos conhecimentos médicos e da teoria cartesiana exposta na parte d’O Mundo intitulada O Homem.
A
análise textual, certamente ainda não acabada, forneceu muita matéria,
principalmente graças às investigações ao longo de quase três décadas d’Annie
Bitbol-Hespériès. Repetimos o que dissemos no ponto 1, aguarda-se com
expetativa a anotação de teor científico na sua futura edição. O que mais
devemos destacar aqui é a especificidade discursiva deste texto em relação ao
resto do corpus cartesiano por não ser, à
primeira vista, uma obra de reflexão filosófica, devendo ser aproximado da
produção médica, sobretudo anatómica. Deste modo, chega-se a formular a questão
seguinte: quais os instrumentos (inteletuais) com que Descartes defende a nova
explicação do funcionamento do corpo humano? ou, noutras palavras: qual é o
estilo da fisiologia cartesiana?
Não foi propriamente assim que os intervenientes
expuseram a sua abordagem. Mas parece-nos que a orientação das análises vai
também neste sentido. A noção de estilo é, pois, discutível. Com o da
intertextualidade, intrometeu-se tardiamente no campo da filosofia e das
ciências. Foi em 2013 que um cartesianista francês, Denis Kambouchner, ousou
publicar um estudo intitulado Le Style de Descartes (Paris, Manucius, 2013), considerando que a realização do sistema
pela escrita pode ser estudada como o processo idêntico ao de qualquer homem de
letras. No entanto, este ensaio não providencia respostas à nossa interrogação.
A problemática da escrita d’O Homem cruza o
campo da ciência com o da expressão literal, a questão do escrever a matéria
não se coaduna com a da escrita filosófica, isto é do trabalho do conceito.
A abordagem do homem levou Descartes a formar-se em duas
disciplinas a que, até 1630, quase nunca se tinha dedicado, a anatomia e a
química. A matéria, ou o objecto, deste tratado é o corpo enquanto objeto real.
Obrigando portanto a uma indagação prática. Daí a reformulação da questão
inicial com vista a expor brevemente as comunicações feitas em Lyon: qual é a
maneira própria de Descartes para descrever o corpo em funcionamento,
sabendo-se que a teoria subjacente a esta descrição, o mecanismo, rompe com uma
grande parte da tradição?
Luís Manuel Bernardo analisou o sistema da
analogia :
« Num primeiro momento,
procurámos estabelecer um princípio de organização da quantidade e diversidade
das analogias, para, num segundo momento, tentarmos melhor definir o objectivo
de Descartes ao recorrer a esse dispositivo retórico no domínio da investigação
científica, nomeadamente, numa etapa de constituição desse tipo de saber.
Tornando-se, então, evidente que se tratava de induzir um imaginário científico
associado a um modo particular de conceptualização, buscámos nas Regras para
a Direcção do espírito, o aparato justificativo de um tal procedimento. Essa inquirição
levou-nos a dois resultados conclusivos paradoxais : por um lado, a
constituição de um imaginário revelou-se necessária à luz dos princípios
epistemológicos desse texto, enquanto, por outro, ambas as obras, postas em
diálogo, suscitaram a questão da sua fragilidade metafísica, na qual, mais do
que em condições contextuais, julgamos estar a razão para o respectivo
abandono » (resumo por Luís Manuel Bernardo).
Quanto a uma abordagem meramente científica, isto é na
perspetiva da história das ciências, Bitbol-Hespériès relembrou a grandes
linhas dos contéudos médicos, insistindo sobre a novidade cartesiana,
contemporânea dos trabalhos de William Harvey (1578-1657). Daí o problema do
contributo real de Descartes, cuja teoria da circulação coexiste com a do
Inglês mas não resistirá às evoluções. O golpe de morte será dado pelo
newtonianismo. A historiadora realça assim o contributo na publicitação da
descoberta harveiana graças ao Discurso do método (1637) que, diz ela, permitiu dar a conhecer a teoria dentro dum
terreno novo. A fisiologia mecânica facilitou, por assim dizer, a promoção da
outra teoria, que ainda ficava agarrada a paradigmas tradicionais, como o do
Sol/coração, com o qual rompe Descartes. Mas, supondo a legitimidade da
expressão, o que dizer da anatomia cartesiana, sendo esta prática uma das duas
adoptadas por Descartes para construir o seu sistema fisiológico.
Vimos que a descrição e a explicação fisiológicas
cartesianas passam pela analogia, isto é uma figura de pensamento e de
expressão. A comunicação de Hervé Baudry tencionou dar pistas de leitura nesta
perspetiva. O Homem entra em concorrência
(científica) com os anatomistas profissionais, aos quais o autor se refere
repetidas vezes para diferenciar a sua posição. A anatomia é a divisão
organizada do corpo em partes cada vez mais pequenas. Pode-se dizer que a
ruptura cartesiana põe em causa dois princípios: o visível, estudado pelos
anatomistas; a lógica anatómica que, segundo Guy de Chauliac (ca. 1298-1368) no Capítulo singular da Grande
Cirurgia, reeditada e traduzida ao longo dos séc.
16 e 17, conduz do geral ao particular. Para Descartes, observar à maneira dos
anatomistas não chega para atingir o essencial, isto é, o que faz funcionar o
corpo, porque não é visível. O autor segue Jean Fernel (1497-1558) para quem a
fisiologia é a ciência do invisível. A observação anatómica, dependente dos
sentidos (vista e tato) é portanto ultrapassada pelo processo de
inteligibilidade. Deste ponto de vista, a anatomia forneceu a Descartes, por
assim dizer, um mapa rodoviário ajudando-o a entrar nos labirintos do corpo.
Por outro lado, reduz as suas partes a um número muito inferior ao dos manuais
de anatomia que utiliza (entre outros, Jean Bauhin). Esta simplificação impera
também sobre vários paradigmas da tradição galénico-aristotélica (espíritos,
funções...). O modelo químico constitui uma base da sua fisiologia mecânica,
sendo possível encará-la como a inversão da lógica comum: Descartes deduz dos
princípios dinâmicos (fermentação, destilação...) os mecanismos, figuras e
movimentos, do funcionamento corporal através da observação, direta e indireta,
de alguns órgãos (em particular o coração e o cérebro), veias, músculos e
nervos. Desta maneira, O Homem propõe uma
explicação fisiológica em que o invisível se torna visível e inteligível graças
à demonstração iconográfica e à retórica da comparação (a como b). Este duplo
modo discursivo imagem/texto (veja a ilustração em baixo) assinala a estreita combinação do
literário e do científico num objetivo que não é de ilustrar, no sentido moral,
humanista, e cognitivo, mas de convencer, implicitamente, da caducidade do
antigo sistema, com um novo modelo de inteligibilidade.
(O Homem, 1662, p. 25; desenho feito por Descartes)
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