O
Homem de Descartes.
A
situação em 2014 (III)
3. Algumas
receções seis- e setecentistas
Uma das
principais novidades do colóquio de janeiro (ver neste blog, 27.01.2014 e 14.02.2014) foi também ajudar a compreender melhor um
capítulo do cartesianismo no que toca a O Homem, isto é levar
uma parte do véu sobre as leituras que foram feitas a partir das primeiras
publicações, póstumas, relembremos.
Certo é que, com
a edição latina e depois a francesa, reações e aproveitamentos não tardaram a
exprimir-se.
Na sua
comunicação, « Médecins et cartésiens entre Louvain et Paris
(1662-1670) », Domenico Collaccioni estudou o processo de receção
atribulado do tratado cartesiano pela Universidade de Lovaina, antes da
condenação de 1662 e nos anos seguintes, com destaque para os escritos de
Vincent Philippeaux. Em particular, o Compendium omnium praecipuarum
actionum automaticarum in homine (1662), pouco conhecido até agora,
que pode ser considerado em parte como um comentário d’O Homem.
Esclareceu também a vivacidade da receção lovaniana pela defesa, no ano de
1662, de três teses de medicina, ligadas à questão das ações automáticas, fator
não alheio à reação institucional no contexto do aceso conflito opondo jesuítas
e jansenistas.
As apresentações
que se seguem são da autoria de cada autor e foram traduzidas (do francês ou do
inglês).
Philippe Drieux,
« Machine et communication ».
O parágrafo de O
Homem correspondendo ao artigo 83 da tabela elaborada por
Clerselier deixa admirado La Forge. Acha o artigo « demasiado breve por
estar tão bonito ». O objetivo desta comunicação visa assim elucidar as
motivações de tal apreciação estética. Deve-se ao fato de La Forge crer poder
ler no texto de Clerselier uma descrição do suporte corporal das ligações que
nos unem secretamente às màquinas parecidas connosco. Esta leitura impõe ao texto cartesiano várias torções mas
contribui para o fazer entrar na posteridade, nomeadamente em Malebranche. A
leitura ocasionalista do artigo por La Forge constitui um bom exemplo de figura
da problemática da receção.
Emanuela
Scribano, « La Forge et les ennemis de L’Homme ».
No seu Traité
de l'esprit de l'homme, La Forge entra em polémica com os filósofos que
confundem o espírito e o corpo atribuindo a razão aos animais. O erro desses
filósofos vem de acreditarem que o comportamento animal implica a inteligência.
Cureau de La Chambre encarna o inimigo de La Forge. Segundo este último, a
fisiologia de Descartes fornece o melhor argumento contra aqueles que fazem a
confusão espírito/corpo porque demonstra que nenhum conhecimento é necessário
para explicar este comportamento. O princípio segundo o qual o conhecimento é
necessário para produzir um efeito, que será central no ocasionalismo, é
portanto percebido como estranho à filosofia cartesiana pelos primeiros
filósofos que se reclamam da filosofia de Descartes.
Raphaëlle
Andrault, « Sténon lecteur de L’Homme ».
Em 1665, o Discours
sur l'anatomie du cerveau (Discurso sobre a anatomia do cérebro)
pronunciado no salão de Thévenot em Paris fica como um marco durável na
história do cartesianismo. Percebido como uma arma para refutar de maneira
definitiva a explicação da união do corpo e da alma proposta pelo tratado d’O Homem,
passa a ser uma máquina de guerra virada contra a metafísica cartesiana,
nomeadamente por Spinoza e Leibniz. Esta receção oculta no entanto as relações
ambíguas e complexas entre a anatomia de Sténon e a epistemologia cartesiana.
Comparar o uso da analogia da máquina em La Forge e em Sténon permite
esclarecer não só a natureza do desde então chamado « mecanismo
médico », a ligação entre a metafísica da união e a anatomia do cérebro,
mas também as diferentes articulações, desenvolvidas pelos cientistas que se
reclamam de Descartes, entre observações e hipóteses.
O
Homem de Descartes.
A
situação em 2014 (IV)
4. Abordagens filosóficas
Claude Gautier ,
« Le Traité de la nature humaine de David Hume
est-il un traité de l'homme ?»
Na sua
comunicacão, « Será o Traité de la nature humaine de
David Hume um tratado do homem ? », procurou mostrar de
que maneira(s) a nova distinção entre filosofia natural e filosofia moral,
depois de Newton, reinterpretada por Hume numa perspectiva céptica e empirista,
leva a dissociar o que pertence à constituição de uma ciência do homem,
entendida como um indispensável pressuposto do desenvolvimento dos saberes
positivos.
Erik-Jan Bos,
« The concept of « inverse transmission » of sense perception in the
brain ».
Em O Homem,
Descartes trata extensamente dum tópico que se podia chamar « transmissão
inversa ». As sensações das coisas exteriores são transferidas da
superfície interior do cérebro para a glândula pineal pelos espíritos animais,
que fluem fora da glândula para a superfície interior do cérebro. Na Dioptrique,
Descartes deixa em silêncio esta última fase da percepção e as poucas palavras
sobre isso nas Passions de l’âme contradizem a
explicação de origem. Neste contexto as disputas de Regius em 1641 são
comprovadamente interessantes. Mostram que Regius sabia muito mais sobre as
teorias de Descartes, incluindo a questão do enchimento das cavidades do
cérebro, do que se pode encontrar nos escritos de Descartes. Defendo que 1) as
publicações de Descartes refletem as ideias mais avançadas de Descartes ;
2) a publicação d’O Homem pode ser vista como um falhanço,
uma vez que Descartes nunca mais assumiu algumas dessas ideias.
Julie Henry,
« Ce que peut le corps. Une mise en regard du traité de L’Homme de
Descartes et de l’Abrégé de physique de Spinoza »
O Homem de Descartes e o
chamado Abrégé de physique de Spinoza, muito diferentes tanto
na forma como nos conteúdos, partilham uma abordagem comum : pensar o que pode
o corpo por si mesmo. Nesta perspectiva das funções corporais, propôs-se um
diálogo imaginário entre ambos os textos, reinscrivendo-os nos respetivos
projetos filosóficos : descrição fisiológica e sensitiva do corpo humano
no primeiro, material físico numa perspetiva ética para o segundo.
Stephen Gaukroger
O projeto
filosófico geral de Descartes leva também em conta o que faz humanos os seres
humanos. Este aspeto é muitas vezes implícito e a melhor maneira de o tornar
manifesto consiste em comparar o que diz dos estados cognitivos e afetivos dos
animais e o que diz desses estados nos humanos. Descobrimos então, apesar de
uma certa semelhança entre eles, que o que distingue os seres humanos é a sua
capacidade de se distanciarem desses estados e fazerem juízos sobre eles. Os
críticos de Descartes no século XVIII argumentaram que esta conceição
individualista era inadequada.
(FIM)