O Homem de René Descartes
A
situação em 2014
No quadro do projeto « O conceito de natureza no
pensamento médico-filosófico na transição do século XVII ao XVIII »,
investigadores do CHC participaram no colóquio Nouvelles recherches sur le traité de L’Homme de Descartes. Foi
organizado por Delphine Kolesnik-Antoine e teve lugar na ENS de Lyon em 16 e 17
de janeiro de 2014, contando com 19 participantes (inicialmente 20).
Pela primeira vez, O Homem foi alvo exclusivo de um encontro de especialistas, o que é de
notar uma vez que é um texto do corpus cartesiano considerado secundário dado o
seu teor, aparentemente, menos « filosófico ». O evento reflete a
evolução dos estudos não só internalistas mas também em história da filosofia,
que se traduz em abordagens multidisciplinares e pela atenção cada vez maior à
história dos textos.
O tratado, provavelmente redigido em 1632-1633, mas cujo
manuscrito autográfo não se conhece, teve publicação póstuma, uma primeira vez
numa tradução latina em 1662, depois na língua original, o francês, em 1664.
Além disso, tratando-se de uma parte do tratado de física intitulado Le
Monde, temos os principais ingredientes que
constituem a especificidade do texto em análise e orientam futuros trabalhos:
(1) problemas do estabelecimento do texto, (2) aspetos científicos e
literários, (3) receções seis- e setecentistas e (4) leituras
filosóficas. O colóquio permitiu abordar todos estes aspetos e trazer algumas
novidades. Dado o número e a qualidade das intervenções, só podemos exprimir,
desde já, o nosso desejo que as atas deste encontro saiam à luz os mais
rapidamente possível. Contentemo-nos agora com alguns reparos sobre as rubricas
assinaladas. Cada uma será publicada à parte ao longo das próximas semanas.
1. O texto d’O Homem
Este tratado tem sido mal... tratado pelos tradutores e
editores. No mesmo ano que L’Homme, em 1664, foi
publicado Le Monde ou Traité de la lumière (O
Mundo ou Tratado
da luz). Na realidade, O Mundo de Descartes é constituído por ambos os textos. Claude Clerselier,
o primeiro editor do texto francês, que afirma possuir o texto original,
explicou que o título « O Homem » não
era de Descartes, mas sim era precedido por um mero « capítulo 18 ».
Destarte, O Homem deve ser considerado, dado a
sua dimensão e coerência interna, como a segunda parte do Mundo. A primeira, ou Tratado da luz, é
composta por 15 capítulos, ficando por resolver a questão dos capítulos em
falta, 16 e 17. É este Mundo (incompleto) que
foi traduzido em várias línguas, o alemão (Le monde ou traité de la lumière = Die Welt
oder Abhandlung über das Licht, trad. G.
Matthias Tripp, Berlin : Akad.-Verlag, 1989), o espanhol (El mundo o el
tratado de la luz,
trad. Ana Rioja, Madrid : Alianza, 1991) ou, há mais tempo, o russo (Kosmogonija, trad. S. F. Vasil’eva, Baku, Izd.
Azerbajdžan. Gos. Naučno-Issledovat. Inst., 1930).
Capa das edições originais |
Para o colóquio foram
convidados tradutores mais recentes : Stephen Gaukroger apresentou a sua
tradução sob o título The World and Other Writings (1998) coexiste com à de Thomas Steele Hall
(1972, 2003) ; Erik-Jan Bos falou um pouco da edição neerlandesa que
anotou com Han van Ruler e que foi traduzida a partir do texto francês por
Jeanne Holierhoek (De Wereld, De Mens, Amsterdam : Boom, 2011) ; Delphine Kolesnik-Antoine
apresentou uma nova edição numa colecção de bolso, bem necessária para quem
quer ter acesso ao texto provavelmente mais próximo do original e ao alcance do
grande público. Até agora, tínhamos várias edições de acesso difícil, por
estarem esgotadas, sendo a melhor, para análise, a de Annie Bitbol-Hespériès, a
primeira a unir as duas partes sob o mesmo título (Le Monde, Paris, Seuil, 1996). Esta especialista da questão médica em
Descartes também apresentou as linhas da problemática científica deste texto e
descreveu as novidades da futura edição dos escritos médicos cartesianos (além
do Homem, a Description du corps humain, os Excerpta anatomica e as Primae
Cogitationes), isto é o volume II das obras
completas a publicar por Gallimard na coleção TEL (já sairam os vol. III e VIII
1 e 2). Informação valiosa sobre a questão filológica foi provida por Franco-Aurelio
Meschini na sua comunicação « Materiali per un’edizione critica de L’Homme ed altre suggestioni », prolongando os trabalhos que publicou
em 2011 na obra coletiva Le opere dei filosofi e degli scienziati. Filosofia e scienza tra testo,
libro e biblioteche (Firenze: Olschki, p. 165-204). Enfim, o ponto da situação sobre a nossa
tradução portuguesa ocasionou sobretudo uma formulação interrogativa sobre o
texto de referência e os protocolos para uma edição crítica, nomeadamente a
questão das variantes em relação ao texto traduzido. Como disse em introdução
Meschini, editar implica liberdade do lado do editor e legibilidade do lado do
leitor. Portanto, ainda estamos livres de escolher entre o texto da primeira
edição latina, por Schuyl, de 1662 e a segunda, pelo mesmo com variantes, de
1664, ou seja, como mostra o stemma de Meschini (2011, p. 202), o texto
provindo da cópia de Van Surch e o outro provindo da cópia de Gutschoven.
(a seguir)
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